Por Bruno Pinhal
Estou neste momento a concluir a rodagem de uma série para uma plataforma de streaming internacional, sobre uma carismática e incontornável figura do desporto português das últimas quatro décadas. A história do enigmático presidente de um clube de futebol. Trata-se portanto de um biopic. É sobre este género cada vez mais na moda que vos gostaria de falar.
Por cá nos últimos anos tivemos Snu, de Patrícia Sequeira, SoldadoMilhões, de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, Variações, de João Maia, Doce, de Patrícia Sequeira, Salgueiro Maia, de Sérgio Graciano. Um pouco mais antigo, tivemos ainda Amália, de Carlos Coelho da Silva.
Os filmes biográficos são uma forma simples de chamar a atenção do público. Já que são projectos baseados em rostos famosos instantaneamente reconhecíveis. Hollywood sempre adorou um bom drama biográfico. Estes filmes costumam ser uma óptima maneira de obter glória nos Óscares, com alguns filmes biográficos como Uma mente brilhante, de Ron Howard, e O DiscursodoRei, de Tom Hooper, a saírem vencedores do muito cobiçado Óscar de Melhor Filme. No entanto, as produções de biopics também se podem tornar paródias de si próprias, propensas a reduzir figuras distintas do passado a uma colecção de clichés. Considerando a facilidade com que os filmes biográficos podem “puxar o pé para o chinelo”. O que é então necessário para fazer um projecto de qualidade e interessante neste género? A primeira coisa a recordar sobre os filmes biográficos mais fracos é quantas dessas produções são desenhadas a partir de um escopo excessivamente expansivo. Muitos destes guiões acabam por ceder à tentação de fazer uma abordagem cronológica do berço ao túmulo de figuras famosas que embala literalmente todos os momentos famosos das suas vidas. Conceptualmente, é uma maneira de garantir que o público veja cada momento reconhecível da vida de um ícone, garante ainda que o filme seja o mais abrangente possível. Ao estruturar desta forma o desenvolvimento narrativo, a maioria dos filmes biográficos acabam por não deixar espaço para momentos cruciais de respiração. O foco é verificar tudo numa exaustiva checklist biográfica, e não olhar para as pessoas icónicas como pessoas… Isto anda de mãos dadas com outra questão fundamental, os filmes biográficos geralmente definem os seus temas centrais, em função dos maiores feitos pessoais das pessoas retratadas.
Estão constantemente preocupados em garantir que haja uma história de origem imperdível para que com o subir da montanha o herói concretize a façanha mais icónica como tema central. Se olharmos para Darkest Hour, por exemplo, podemos ver um momento em que Winston Churchill, interpretado por Gary Oldman, olha para a marca de uma ventoinha para justificar um momento de epifania em que recorda a missão de resgate militar conhecida como Operação Dínamo. Alguns desses momentos curiosos podem ou não ter acontecido na vida real, mas independentemente disso, eles resumem-se a partes cruciais da vida de alguém apostando o seu potencial dramático, ao serviço dos fãs na temporada dos Óscares. Esses são pontos recorrentes, e são um problema que empobrece os piores filmes biográficos: não estão particularmente interessados nas pessoas biografadas.
Filmes como Bohemian Rhapsody ou The Theory of Everything estão interessados apenas no legado e nas conquistas dessas figuras históricas, mas não em chegar ao seu coração ou perspectivas. Desvendá-los como pessoas profundamente humanas atrapalha o guião na hora de reviver eventos do passado que o espectador já conhece e antecipa. Também não ajuda que no exercício de eliminar as partes menos ortodoxas dessas figuras isso tenha alguns efeitos colaterais tóxicos. Para fazer pessoas como Freddie Mercury encaixarem no molde atraente de um filme biográfico tradicional, esses filmes tendem a remover as partes provocativas ou desafiadoras dessas figuras. Bohemian Rhapsody, por exemplo, foi criado para se encaixar perfeitamente na classificação PG-13 (define a idade dos espectadores acima de 13 anos), uma designação típica da MPAA (Motion Picture Association) para biopics. Isso garante à partida uma ampla gama de públicos. Ao pôr essa tática de marketing à frente de qualquer valor de qualidade dramatúrgica, as complexidades de Mercury foram removidas e a sua sexualidade foi tratada com paninhos quentes. O enfantterrible Freddie Mercury era agora representado no ecrã
como alguém que poderia facilmente ceder direitos de imagem à campanha publicitária de uma instituição bancária sem pingo de controvérsia. Ao aderir às normas dos filmes biográficos convencionais, BohemianRhapsody deixou para trás as próprias características que tornaram Mercury icónico o suficiente para merecer um filme biográfico.
Embora muitos filmes biográficos dêem má fama ao género, nem tudo é pouco imaginativo e povoado de referências estafadas. Muitos biopics mostram formas criativas e interessantes de contar a história. Uma boa decisão é manter o escopo contido numa pequena parte da vida da pessoa famosa, em vez de se concentrar no maior somatório de eventos históricos possíveis. Projectos como Lincoln ou A marcha da liberdade mostram como menos pode ser mais, permitindo desta forma que o guião tenha mais tempo para conhecer a figura histórica, em vez de estar sempre com pressa para chegar ao próximo grande evento ao vivo. Um excelente exemplo disso é Spencer. Um filme sobre a princesa Diana protagonizado por Kristen Stewart, e que poderia ter seguido o molde da narrativa biográfica tradicional à risca. Em vez disso, o guionista Steven Knightcontou a história enquadrando-a durante um fim de semana de Natal, narrando a luta de Diana para sobreviver às enormes expectativas e constante vigilância da família real. O realizador, Pablo Larraín,expõe as lutas psicológicas internas de Diana com uma qualidade avassaladora que dotou o filme de uma camada de terror. O afastamento das normas biográficas padrão permitiu que Spencer procurasse uma identidade própria, e dessa forma tenha criado um alter ego cinematográfico idiossincrático para a própria Diana, que nunca se contentou em simplesmente encaixar nas expectativas da sociedade.
Em termos puramente estéticos, filmes biográficos melhores também evitam convenções a nível visual, tornam a cinematografia um reflexo da visão de mundo de uma determinada personagem. Como é exemplo Ed Wood, o filme de Tim Burtonde 1995 é mostrado com uma paleta de cores monocromática e o prólogo de abertura feito num estilo que evoca os trabalhos piegas do cineasta retratado. Em vez de forçar a vida de Ed Wood nos padrões visuais dos filmes biográficos, Burton força o género a moldar-se aos padrões visuais únicos do homem por trás de Plan 9 From Outer Space.
Para percebermos como projetos como Spencer, Ed Wood ou ainda I’m Not There, de Todd Haynes, entre outros, contrariam as tradições do filme biográfico para criar algo excepcionalmente memorável, não podemos deixar de nos perguntar porque tantos outros filmes biográficos se contentam com o óbvio e familiar. Porquê reduzir pessoas extraordinariamente únicas da história a moldes visuais e narrativos testados uma e outra vez? É pouco provável que o cinema pare de produzir versões estereotipadas de cinebiografias nos tempos mais próximos. Felizmente os melhores exemplos do género são uma boa promessa do valor artístico que pode ser extraído destes filmes, ou como diria Freddie Mercury: “Is this the real life? Is this just fantasy?”
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